Fotografia de Helio Creston
Notas do sentir e pensar para “Ivanov”, de Anton Tchékhov e Teatro Máquina
Por Gyl Giffony
É por isso que se há de entender
Que o amor não é um ócio
E compreender
Que o amor não é um vício
O amor é sacrifício
O amor é sacerdócio
Amar
É iluminar a dor
- como um missionário
Viver do Amor - Chico Buarque
Do sentir e pensar, não necessariamente na mesma ordem
O que pode tornar o homem um ser ermo e inóspito?
A falta de? O ócio?
E o que conduz a esse lugar?
O que torna o indivíduo uma folha seca, madeira crua, árvore cortada ou cachorro pintado em tela? O que subtrai o fogo, foguete, faísca de uma vida? E o que tira o homem da letargia? O que faz ele permanecer na poltrona?
Ivanov afunda quando aprofunda sua constatação mais funda: há instantes na vida em que tudo é perda, material (a propriedade se vai) e sentimental (Anna também). E é no aparente nada, fincado na dor subjetiva que bagunça o ócio... É aí que Ivanov dá-se conta que é humano, que erra, que chora, que sente. Quando se banha em lágrimas, Ivanov parece compreender, através do sensível, aquilo que a razão insistia em mascarar: ele ama, ou pelo menos é capaz de sentir. E isso é inevitável para o personagem que escolheu o ócio ao amor.
Do pensar e sentir, não necessariamente na mesma ordem
Também é imprescindível a montagem “Ivanov”, de Anton Tchékhov e do Teatro Máquina. Espetáculo de autoria mista, pois Tchékhov pôs no papel, e o Máquina leu e criou, a partir de sua investigação desconstrutiva, as linhas, ou melhor, as entrelinhas do renomado escritor que possui nas possibilidades de subtexto uma de suas características mais referendadas. O grupo escreve então “Ivanov” lado a lado com Tchékhov, e dá a ler de forma afinada suas referências através dos elementos que dispõe na cena (elenco, iluminação, cenário, objetos, figurinos), compreendendo com lentes próprias e apropriadas as dimensões do texto russo.
A pesquisa de linguagem que o Máquina vem encampando aparece em verso e reverso. É revista ao dar uma ênfase especial ao trabalho de atores e atrizes, bem como ao buscar na precisa encenação traços épicos vinculados a acentuações dramáticas (fisicalização das emoções atrelada à técnica de contato e improvisação; descolamento estruturais de fala, intenção e movimento; descomposição do cenário, focando texto e personagens; entrada do estranho personagem Gavrila e seu tilintar de garrafa e copos; polifonias visuais e sonoras, como nos momentos em que os personagens estão por trás das cortinas ou as conversas “ao fundo”/lateral onde os atores e atrizes permanecem visivelmente durante o todo o espetáculo).
Nesse sentido, a montagem interessa-se por apresentar, e não representar. Isto se faz notório na opção por uma linha de fala cotidiana, sugerindo uma aproximação com bases de uma não-interpretação. Ressalvas feitas a apresentação que assisti (encerramento do VII Festival de Teatro de Fortaleza, no Theatro José de Alencar, com um público em média de 250 pessoas) e sabendo que o espetáculo propõe-se a um número reduzido de espectadores em tom intimista, parece necessário uma compreensão e atenção mais ampla desta escolha por parte do elenco e da direção, pois ela traz problemas intrínsecos ao ritmo das cenas e ao entendimento do texto, principalmente na esfera da escuta.
Desafiando-se, o Teatro Máquina oferece riscos a si e ao público. Maravilha! A dramaturgia de tempo esgarçado de Tchékhov (silêncios, olhares, aparentes inações) é algo que confronta o tempo frívolo e incessante de nossos dias. Aqui está mais um ponto importante da escolha que o Máquina realiza em “Ivanov”: este tempo tchekhoviano brinda-nos com uma teatralidade outra, uma vida outra, que aparenta ser de dificultosa percepção/recepção pelo cerceamento que o sistema social moderno e a ideia de civilidade tem direcionado às experiências estéticas, aquelas que nos despertam através dos sentidos e das pulsões.
Jogando com as convenções e provocando o espectador a compor sua própria dramaturgia, a encenação convida ainda o público a ver ou se esforçar para ver algumas das últimas cenas do espetáculo através de imensas portas que são dispostas à frente da platéia pelos atores e atrizes, materializando uma “quarta parede” que o espetáculo não faz uso. Atento a contextos mais amplos, este acontecimento sugere, conforme explica Nestor Garcia Canclini, que
Mudar as regras da arte não é apenas um problema estético: questiona as estruturas com que os membros do mundo artístico estão habituados a relacionar-se, e também os costumes e crenças dos receptores. Um escultor que decide fazer obras com terra, ao ar livre, não colecionáveis, está desafiando os que trabalham nos museus, os artistas que aspiram a expor neles e os espectadores que vêem nessas instituições recintos supremos do espírito (Nestor Garcia Canclini; Culturas Híbridas; p. 40).
“Ivanov” interessa-me então como artista, espectador e sujeito. Nessa conjugação, e com sentimento de felicidade e inquieto pensamento, escrevo estas linhas. O Teatro Máquina é um grupo muito próximo a mim e no qual acredito bastante. Penso também que “Ivanov” oferece ao grupo uma dimensão não tão hermética quanto espetáculos anteriores, como “Repéter” (2007/2009) e “O Cantil” (2008), e o melhor disso é que o coletivo não abriu mão de sua aprofundada pesquisa de linguagem e de seus experimentos formais, o que acontece também em seu penúltimo espetáculo “João Botão” (2010). “Ivanov” (2011) diz para mim do amor, do ócio, e que vale a pena ver, fazer, acreditar e transformar o teatro.