segunda-feira, 3 de outubro de 2011

EU... vou contar exatamente como foi.


por Silvero Pereira

“... O ator que se tornar senhor absoluto de si mesmo e de seu ofício banirá o elemento “acidente” de sua profissão e criará uma base sólida para seu talento. Somente um comando indiscutível de seu corpo e de sua psicologia lhe dará a autoconfiança, a liberdade e a harmonia necessárias a sua criatividade. Pois na moderna vida cotidiana não fazemos uso suficiente ou apropriado de nossos corpos e, em consequência, a maioria de nossos músculos torna-se fraca, sem flexibilidade, insensível. Eles devem ser reativados para que não lhes falte elasticidade...”
Michael Chekhov (Para o Ator, pg 06)
O treinamento de um ator parte de seu auto-conhecimento, isso é trivial. A questão maior é que aqui, na nossa cidade, o que se construiu foi à política da hierarquia do diretor. Nós, atores, não estamos acostumados, e com isso muitos até banalizam as práticas de investigação, aos árduos laboratórios corporais/emocionais, aquilo que nos move. Estamos acostumados a iniciar e em três meses estrear, ou seja, queremos os aplausos já, imediatamente. Talvez seja esse um dos maiores motivos que fazem o público pensar várias vezes antes de escolher ir ao teatro, porque os acostumamos a essa situação, a perceberem que não são impulsionados ou alavancados, arrebatados, porque isso nem no espetáculo aconteceu ainda. É preciso viver para fazer, vivenciar para experimentar, experimentar para testar e testar para acontecer ou descartar.
No último fim de semana esteve em cartaz Otelo do Coletivo Cambada. Em cena uma das famosas tragédias de Shakespeare, mas não uma clássica shakespeariana, pois nesta o que existe é uma tragédia doméstica, não estão em questões os problemas nacionais, fantasmas não saem de seus túmulos, não chove sangue, não há alívio cômico, não há subtramas e a ação acontece por meio de reações a um único personagem, Iago. Essa síntese é o primeiro plano da montagem do Cambada, com exceção do alívio cômico que entra, mas ainda sem propriedade suficiente, tímido. A assinatura do diretor João Andrade Joca é evidente nos corpos, na preparação, na composição e nos signos expostos. Entretanto, e fundamental, é a forte presença do próprio Cambada na cena, fortalecendo a nítida percepção da existência do diálogo entre atores e diretor. O espetáculo não é o que se pode chamar de “clean”, ele é “essência”, o que provavelmente tenha sido um dos grandes desafios, pois a dramaturgia é construída muitas vezes na passagem de tempo refletida nos corpos e na utilização da luz, sendo esta última um dos pontos mais altos da encenação. Shakespeare está vivo, é pulsante e em vários momentos ele grita ao público sua existência, sua presença viva. Seu texto é para fechar os olhos, enxergar a alma e chorar, motivo que se faz sair de casa e escolher teatro – a cidade está lá fora, onde tudo acontece. Eu estou aqui dentro, onde tudo ME acontece.
Cambada apresenta uma evolução, uma maturação e talvez, um caminho a ser apontado em próximos trabalhos a partir da consciência dos acertos, das escolhas feitas. O elenco é jovem e isso, às vezes, é um dos incômodos, nos faz sentir falta de mais interno/externo. Entretanto, Walmick Campos faz exatamente o que a história provou sobre esse texto: Iago é a luz de Otelo. Já no conjunto as interpretações funcionam e com grandes bons momentos de emoção, mas falta uma unidade no campo de atuação, como se cada ator estivesse trilhado um caminho de composição e em poucos momentos se encontram. Não há necessidade de destrinchar críticas individuais sobre os atores se ao final o que sobressai é o Grupo, o Coletivo, e isso é um ótimo sinal. O figurino é estranho, tem sua funcionalidade, mas esteticamente é feio, principalmente pelas cores escolhidas. O cenário é o texto, o espaço a favor das imagens a serem criadas as lanternas é a composição espacial, o cenário é o espaço vivo.
Otelo é uma maravilhosa/acertada escolha. Me fez revisitar Shakespeare e assistir Hamlet, Macbeth, Romeu e Julieta. Só lamento ter que ver na TV e não ver no teatro, como vi no Cambada.

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