segunda-feira, 17 de outubro de 2011

"O amor não é um ócio"



Fotografia de Helio Creston

Notas do sentir e pensar para “Ivanov”, de Anton Tchékhov e Teatro Máquina

Por Gyl Giffony


É por isso que se há de entender
Que o amor não é um ócio
E compreender
Que o amor não é um vício
O amor é sacrifício
O amor é sacerdócio
Amar
É iluminar a dor
- como um missionário

Viver do Amor - Chico Buarque


Do sentir e pensar, não necessariamente na mesma ordem

O que pode tornar o homem um ser ermo e inóspito?
A falta de? O ócio?
E o que conduz a esse lugar?

O que torna o indivíduo uma folha seca, madeira crua, árvore cortada ou cachorro pintado em tela? O que subtrai o fogo, foguete, faísca de uma vida? E o que tira o homem da letargia? O que faz ele permanecer na poltrona?
Ivanov afunda quando aprofunda sua constatação mais funda: há instantes na vida em que tudo é perda, material (a propriedade se vai) e sentimental (Anna também). E é no aparente nada, fincado na dor subjetiva que bagunça o ócio... É aí que Ivanov dá-se conta que é humano, que erra, que chora, que sente. Quando se banha em lágrimas, Ivanov parece compreender, através do sensível, aquilo que a razão insistia em mascarar: ele ama, ou pelo menos é capaz de sentir. E isso é inevitável para o personagem que escolheu o ócio ao amor.

Do pensar e sentir, não necessariamente na mesma ordem

Também é imprescindível a montagem “Ivanov”, de Anton Tchékhov e do Teatro Máquina. Espetáculo de autoria mista, pois Tchékhov pôs no papel, e o Máquina leu e criou, a partir de sua investigação desconstrutiva, as linhas, ou melhor, as entrelinhas do renomado escritor que possui nas possibilidades de subtexto uma de suas características mais referendadas. O grupo escreve então “Ivanov” lado a lado com Tchékhov, e dá a ler de forma afinada suas referências através dos elementos que dispõe na cena (elenco, iluminação, cenário, objetos, figurinos), compreendendo com lentes próprias e apropriadas as dimensões do texto russo.

A pesquisa de linguagem que o Máquina vem encampando aparece em verso e reverso. É revista ao dar uma ênfase especial ao trabalho de atores e atrizes, bem como ao buscar na precisa encenação traços épicos vinculados a acentuações dramáticas (fisicalização das emoções atrelada à técnica de contato e improvisação; descolamento estruturais de fala, intenção e movimento; descomposição do cenário, focando texto e personagens; entrada do estranho personagem Gavrila e seu tilintar de garrafa e copos; polifonias visuais e sonoras, como nos momentos em que os personagens estão por trás das cortinas ou as conversas “ao fundo”/lateral onde os atores e atrizes permanecem visivelmente durante o todo o espetáculo).

Nesse sentido, a montagem interessa-se por apresentar, e não representar. Isto se faz notório na opção por uma linha de fala cotidiana, sugerindo uma aproximação com bases de uma não-interpretação. Ressalvas feitas a apresentação que assisti (encerramento do VII Festival de Teatro de Fortaleza, no Theatro José de Alencar, com um público em média de 250 pessoas) e sabendo que o espetáculo propõe-se a um número reduzido de espectadores em tom intimista, parece necessário uma compreensão e atenção mais ampla desta escolha por parte do elenco e da direção, pois ela traz problemas intrínsecos ao ritmo das cenas e ao entendimento do texto, principalmente na esfera da escuta.

Desafiando-se, o Teatro Máquina oferece riscos a si e ao público. Maravilha! A dramaturgia de tempo esgarçado de Tchékhov (silêncios, olhares, aparentes inações) é algo que confronta o tempo frívolo e incessante de nossos dias. Aqui está mais um ponto importante da escolha que o Máquina realiza em “Ivanov”: este tempo tchekhoviano brinda-nos com uma teatralidade outra, uma vida outra, que aparenta ser de dificultosa percepção/recepção pelo cerceamento que o sistema social moderno e a ideia de civilidade tem direcionado às experiências estéticas, aquelas que nos despertam através dos sentidos e das pulsões.

Jogando com as convenções e provocando o espectador a compor sua própria dramaturgia, a encenação convida ainda o público a ver ou se esforçar para ver algumas das últimas cenas do espetáculo através de imensas portas que são dispostas à frente da platéia pelos atores e atrizes, materializando uma “quarta parede” que o espetáculo não faz uso. Atento a contextos mais amplos, este acontecimento sugere, conforme explica Nestor Garcia Canclini, que
Mudar as regras da arte não é apenas um problema estético: questiona as estruturas com que os membros do mundo artístico estão habituados a relacionar-se, e também os costumes e crenças dos receptores. Um escultor que decide fazer obras com terra, ao ar livre, não colecionáveis, está desafiando os que trabalham nos museus, os artistas que aspiram a expor neles e os espectadores que vêem nessas instituições recintos supremos do espírito (Nestor Garcia Canclini; Culturas Híbridas; p. 40).

“Ivanov” interessa-me então como artista, espectador e sujeito. Nessa conjugação, e com sentimento de felicidade e inquieto pensamento, escrevo estas linhas. O Teatro Máquina é um grupo muito próximo a mim e no qual acredito bastante. Penso também que “Ivanov” oferece ao grupo uma dimensão não tão hermética quanto espetáculos anteriores, como “Repéter” (2007/2009) e “O Cantil” (2008), e o melhor disso é que o coletivo não abriu mão de sua aprofundada pesquisa de linguagem e de seus experimentos formais, o que acontece também em seu penúltimo espetáculo “João Botão” (2010). “Ivanov” (2011) diz para mim do amor, do ócio, e que vale a pena ver, fazer, acreditar e transformar o teatro.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Sakura Matsuri – O Jardim das Cerejeiras (Teatro Mimo)




por Walmick Campos

Segue um exercício de crítica e análise, onde apresento as impressões e sensações a mim transmitidas pelo espetáculo Sakura Matsuri – O Jardim das Cerejeiras, do grupo Teatro Mimo; encenado no dia 11 de outubro no SESC Emiliano Queiroz, dentro da programação do VII Festival de Teatro de Fortaleza.

Em O Jardim das Cerejeiras, Anton Tchekov, conta a história de uma família aristocrática que vive a perda de seus membros e a possibilidade de falência. A venda do grande cerejal da família é uma chance de salvação; mas não hipótese de fácil aceitação, devido ao grande valor sentimental que o envolve.

O espetáculo do Teatro Mimo é uma adaptação corpórea deste jardim, e mais me pareceu um sonho no qual fui inserido enquanto espectador. As imagens, os corpos, a influência Butoh, a luz e os sons me conduziram a isso. A pesquisa é forte e sensível, traz um jogo de oposições que domina a atmosfera. Como é um espetáculo que cresceu a partir do que antes era esquete, há uma diferença de afinação entre suas partes. O que certamente será resolvido ao passo que o espetáculo ganhe mais tempo de vida.

A direção é cuidadosa e muito feliz. Precisa de atenção para que o domínio da técnica não seja superior às sensações que o trabalho é capaz de proporcionar. Há momentos que a repetição de ações chega ao espectador como uma demonstração de habilidade; e não uma expressão sensível.

Os atores são ativos e entregues ao trabalho; porém, a qualidade da execução física possui diferenças. Compreensível, uma vez que os corpos são diferentes por natureza, é o que torna humano; mas a energia não deve ser diferente, como acontece em poucos momentos. Merece destaque o trabalho de Felipe Abreu, Jonathan Pessoa e Tomaz de Aquino. Este último, presente apenas na cena de abertura do espetáculo, e que fascina o olhar do espectador com as formas propostas pelo seu corpo, sob uma luz que salienta sombras e deformidades. Deu vontade de que Tomaz estivesse em mais cenas; e dá a impressão de que isso não acontece em virtude do olhar externo dado por ele enquanto diretor.

A iluminação é linda, valoriza as imagens e traz um clima frio, mesmo com a utilização de cores quentes. No entanto desliza em algumas mudanças sem algo significativo. O figurino - corpos banhados por barro - é perfeito. A trilha é gostosa de ser ouvida, se encaixa lindamente com o que é visto; mas a letra cantada da última música incomoda. O instrumental e o silêncio são mais bem vindos.

Sakura Matsuri – O Jardim das Cerejeiras é um espetáculo muito bonito! Deixou-me com uma imagem onírica por muito tempo na cabeça: o fértil cerejal gritando de dor ao perder seus frutos, da mesma forma que uma mãe padece diante da morte de seus filhos.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O Ceará é a cena. O Interior está em Foco. Black Out no Governo do Estado


por Silvero Pereira
Teve início neste último sábado, dia 08 de Outubro de 2011, o XXII FETAC (Festival de Teatro de Acopiara) que tem sua programação estendida até o próximo dia 15. Uma edição que já começa receoso e com as pernas bambas, devido à falta de apoio no financiamento por parte de seu maior, e que deveria ser o mais interessado na realização deste evento, o Governo do Estado do Ceará com sua, quase inexistente, Secretaria de Cultura. O Festival se propõe a acontecer por motivo de manifestação, por resistência, como prova de sua necessidade ao movimento teatral do interior do nosso Estado, tendo em vista que neste Evento o Ceará é o maior beneficiado, são os municípios que ganham vez, as cidades se preparam um ano para subirem ao palco do teatro do Centro Social de Acopiara e expor suas pesquisas, suas inquietações, suas angústias, suas paixões. Nele, cerca de 800 (oitocentas) pessoas, por dia, são agraciadas com o fazer teatral, genuinamente, do interior do Estado, mas infelizmente o próprio ESTADO não reconhece essa grandiosidade. Por que, para que incentivar o teatro do interior? Por que, para que financiar um festival em Acopiara? Por que, para que dar palco para desconhecidos artistas de mais de 10 (dez) municípios do Ceará? São essas perguntas que me fazem rodar nossas cidades e perceber a construção de um vazio de pensamento, um vazio de humanidade, um vazio de arte, um fazio de progresso.
Sobre a programação do XXII FETAC
Dia 08, sábado
19:00h – D. Zefinha (Itapipoca)/ “O Circo sem tela da Lona furada dos Bufões”
20:30h – Grupo Armadilhas Cênicas (Crato)/ “Em Busca da Terceira Margem”
22:00h – FETAC em Festa. Ingroove (Acopiara) e Gildinho (Cedro)

Dia 09, domingo
19:00h – D. Zefinha (Itapipoca)/ “O Casamento de Tambarim”
20:30h – Cia. Anjos da Alegria (Crato)/ “Dona Patinha vai ser Miss”

Dia 10, segunda-feira
19:00h – Show “Patati Patata Cover” (Crato)
20:30h – Grupo Garajal (Maracanaú)/ “Romeu e Julieta”
21:30h –  Grupo Teatro em Película (Fortaleza)/ “Quando as Galinhas Gemem”

Dia 11, terça-feira
19:00h – Cantigar (Juaz. do Norte)/ Show “Andanças Primeira”
20:30h – Cia. Deus Baco de Teatro (Acopiara)/ “A Triste Partida”
21:30h – Grupo 3X4 de Teatro (Fortaleza)/ Repertório Esquetes

Dia 12, quarta-feira
19:00h – Estilos de rua (Acopiara) / “Riquesas do Ceará”
20:30h – Grupo Damtear (Iguatu) / “As Três Rosas: Manoel, Matraga e Riboaldo”
21:30h – Cia Desabafo de Teatro (Juaz. do Norte) / “A Irmandade Secreta do Boi Santo”
22:00h – FETAC em Festa/ Álvaro Holanda (Barbalha)/ Anderson Justo (Fortaleza)

Dia 13, quinta-feira
19:00h – Cantigar (Juaz. do Norte)/ Show “Andanças Primeira”
20:30h – Marmotas Produções, Luana do Crato (Fortaleza)/ “Branca de Neve: a história que sua mãe não contou”
22:00h – Cia. Argumento (Fortaleza) / “Magno Pirol”


Dia 14, sexta-feira
19:00h – Capoeira (Acopiara)
20:30h – Cia Barafusta (Aquiraz) / “Triiim”
21:30h – Cia. Argumento (Fortaleza) / “Emplasto”
22:00h – FETAC em Festa: Dan Macedo e Djaci Acústico/ Manguaça Shoe de humor (Fortaleza)

Dia 15, sábado
20:00h – Solenidade de Encerramento do XXII FETAC / Premiação
20:30h – Oficart Teatro e Cia. (Russas) / “Cuia”


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

EU... vou contar exatamente como foi.


por Silvero Pereira

“... O ator que se tornar senhor absoluto de si mesmo e de seu ofício banirá o elemento “acidente” de sua profissão e criará uma base sólida para seu talento. Somente um comando indiscutível de seu corpo e de sua psicologia lhe dará a autoconfiança, a liberdade e a harmonia necessárias a sua criatividade. Pois na moderna vida cotidiana não fazemos uso suficiente ou apropriado de nossos corpos e, em consequência, a maioria de nossos músculos torna-se fraca, sem flexibilidade, insensível. Eles devem ser reativados para que não lhes falte elasticidade...”
Michael Chekhov (Para o Ator, pg 06)
O treinamento de um ator parte de seu auto-conhecimento, isso é trivial. A questão maior é que aqui, na nossa cidade, o que se construiu foi à política da hierarquia do diretor. Nós, atores, não estamos acostumados, e com isso muitos até banalizam as práticas de investigação, aos árduos laboratórios corporais/emocionais, aquilo que nos move. Estamos acostumados a iniciar e em três meses estrear, ou seja, queremos os aplausos já, imediatamente. Talvez seja esse um dos maiores motivos que fazem o público pensar várias vezes antes de escolher ir ao teatro, porque os acostumamos a essa situação, a perceberem que não são impulsionados ou alavancados, arrebatados, porque isso nem no espetáculo aconteceu ainda. É preciso viver para fazer, vivenciar para experimentar, experimentar para testar e testar para acontecer ou descartar.
No último fim de semana esteve em cartaz Otelo do Coletivo Cambada. Em cena uma das famosas tragédias de Shakespeare, mas não uma clássica shakespeariana, pois nesta o que existe é uma tragédia doméstica, não estão em questões os problemas nacionais, fantasmas não saem de seus túmulos, não chove sangue, não há alívio cômico, não há subtramas e a ação acontece por meio de reações a um único personagem, Iago. Essa síntese é o primeiro plano da montagem do Cambada, com exceção do alívio cômico que entra, mas ainda sem propriedade suficiente, tímido. A assinatura do diretor João Andrade Joca é evidente nos corpos, na preparação, na composição e nos signos expostos. Entretanto, e fundamental, é a forte presença do próprio Cambada na cena, fortalecendo a nítida percepção da existência do diálogo entre atores e diretor. O espetáculo não é o que se pode chamar de “clean”, ele é “essência”, o que provavelmente tenha sido um dos grandes desafios, pois a dramaturgia é construída muitas vezes na passagem de tempo refletida nos corpos e na utilização da luz, sendo esta última um dos pontos mais altos da encenação. Shakespeare está vivo, é pulsante e em vários momentos ele grita ao público sua existência, sua presença viva. Seu texto é para fechar os olhos, enxergar a alma e chorar, motivo que se faz sair de casa e escolher teatro – a cidade está lá fora, onde tudo acontece. Eu estou aqui dentro, onde tudo ME acontece.
Cambada apresenta uma evolução, uma maturação e talvez, um caminho a ser apontado em próximos trabalhos a partir da consciência dos acertos, das escolhas feitas. O elenco é jovem e isso, às vezes, é um dos incômodos, nos faz sentir falta de mais interno/externo. Entretanto, Walmick Campos faz exatamente o que a história provou sobre esse texto: Iago é a luz de Otelo. Já no conjunto as interpretações funcionam e com grandes bons momentos de emoção, mas falta uma unidade no campo de atuação, como se cada ator estivesse trilhado um caminho de composição e em poucos momentos se encontram. Não há necessidade de destrinchar críticas individuais sobre os atores se ao final o que sobressai é o Grupo, o Coletivo, e isso é um ótimo sinal. O figurino é estranho, tem sua funcionalidade, mas esteticamente é feio, principalmente pelas cores escolhidas. O cenário é o texto, o espaço a favor das imagens a serem criadas as lanternas é a composição espacial, o cenário é o espaço vivo.
Otelo é uma maravilhosa/acertada escolha. Me fez revisitar Shakespeare e assistir Hamlet, Macbeth, Romeu e Julieta. Só lamento ter que ver na TV e não ver no teatro, como vi no Cambada.